Carla Couto, uma lenda de Portugal (parte 1)
Num país onde o futebol move paixões, Carla Couto destacou-se como uma das figuras mais marcantes do desporto em Portugal. Com uma carreira que se estendeu por mais de duas décadas, a ex-avançada da Seleção Nacional Feminina tornou-se um verdadeiro símbolo de perseverança, talento e amor pelo jogo. Muito mais do que os golos que marcou ou os títulos que conquistou, foi – e continua a ser – uma voz firme na luta para a valorização do futebol feminino.

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Nesta entrevista exclusiva ao Somos Fanáticos Portugal, dividida em duas partes, Carla reviveu os momentos principais da sua trajetória, partilhou os desafios que enfrentou dentro e fora de campo e falou-nos do legado que quer continuar a deixar às gerações futuras. Ademais, antes da estreia lusa no Campeonato Europeu Feminino 2025, deu-nos a sua visão sobre a prova e aquilo que as Navegadoras poderão fazer. Acima de tudo, foi uma conversa sincera com quem fez do futebol uma missão de vida.
Um inesperado início no Sporting
Muitos consideram-te uma verdadeira lenda do futebol feminino português. Como é que começou a tua paixão pelo futebol e quais são as lembranças mais marcantes da tua carreira como jogadora?
Eu sempre pratiquei desporto e, antes de enveredar para o futebol de 11, andei no atletismo, na natação, na ginástica, estive no andebol e jogava futebol de cinco, nos Olivais. O futebol de 11 nasce-me quase obrigada, porque o Sporting, em 1992, criou o seu departamento de futebol feminino e fez treinos de captação. Nesse ano, tinha acabado a época a jogar andebol no Liceu Passos Manuel e o meu irmão também foi jogador de andebol.
“A maior alegria que tu me deste na vida foi teres assinado pelo Sporting”
Pai de Carla Couto
Contudo, lembro-me perfeitamente do meu pai vir ter comigo e insistir para irmos ao Sporting. Eu disse: “Não, pai, esquece, não quero mais futebol, agora estou no andebol. É isto que eu quero para mim. Só que o meu pai ficou tão infeliz e a conversa foi à frente de uns amigos meus, então disseram-me: “Vai lá, Carla, vai lá, só para o teu pai não ficar triste e depois não ficas.” Pronto, foi aí que começou.
Fui mesmo naquela de ir lá só para o calar, porque eu não queria de todo jogar futebol. Mas, ao intervalo do treino, o treinador pediu-me logo para assinar e eu não tive coragem de dizer que não. Portanto, fiz a segunda parte do treino, assinei com o Sporting e, quando nós saímos do treino, o meu pai vira-se para mim e diz: “Olha, a maior alegria que tu me deste na vida foi teres assinado pelo Sporting.” Foi assim que começou a minha jornada e carreira no futebol.
Que dificuldades havia no futebol amador?
Como era o quotidiano das jogadoras quando o campeonato ainda era amador e que diferença sentes em relação às condições atuais?
O nosso quotidiano era trabalhar e depois treinar. Ao final do dia, depois do trabalho, éramos a última equipa a treinar. Hoje, a Liga BPI, com as equipas profissionais, tem conjuntos a treinar de manhã, à tarde, até treinos bidiários com treino de campo e depois ginásio. Portanto, é uma realidade completamente diferente daquela que eu vivi. Mas ainda bem que é, porque mostra que ao longo dos anos evoluímos e fomos criando melhores condições à prática do futebol.
Aliás, criou-se condições para que, neste momento, algumas jogadoras de determinadas equipas só façam isto da vida delas. São profissionais de futebol e isto é a sua vida. Para mim, dá-me um gosto enorme, porque sei que eu e muitas outras colegas, no nosso tempo, tivemos a nossa quota-parte de importância para que isto não morresse. Nós lutámos, ano após ano, para que melhores condições fossem criadas.
Não está aqui posto em causa o gosto de ninguém pela prática, mas nós, como amadoras, jogávamos mesmo pela paixão. Aliás, as condições eram adversas. Treinei em pelados, em horas tardias e até tinha vezes em que chegava à casa e dizia à minha mãe: “Não faço ideia de como aqui cheguei.” Além disso, sempre tive trabalhos que me pudessem permitir ir e ter a facilidade em ir à seleção nacional.

Carla com a camisola do 1.º Dezembro. Foto: Facebook Carla Couto.
“Ir a uma fase final do Europeu ou do Mundial já é algo natural para nós”
Indo precisamente à seleção, tiveste algumas vezes a braçadeira de capitã e jogaste por Portugal em 145 ocasiões – na altura foi um recorde, sendo que agora és a quarta mais internacional. Qual era o sentimento de liderar a seleção e que mudanças notaste no ambiente da equipa ao longo dos anos?

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Por um lado, deixa-me orgulhosa por ter sido a mais internacional, mas por outro ficava aquele sentimento de que nós ainda não temos a capacidade para ir a uma fase final, para lutarmos pelas fases finais. Mas, quando conseguimos pela primeira vez, tudo mudou, em 2017. Aí, há uma grande mudança do paradigma do futebol feminino. Começou-se a dar muito mais valor e mais importância ao futebol feminino e à seleção nacional.

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No meu tempo, nunca conseguimos ir a uma fase final e estávamos oito meses sem nos encontrarmos. Atualmente, existe uma planificação em que têm muitos estágios de preparação, jogos amigáveis, criou-se igualmente a Liga das Nações e conseguimos ir a fases finais. Depois, é como tudo na vida…quem ganha, está mais perto de estar mais visível e de criar condições melhores. Agora, ir a uma fase final do Europeu ou do Mundial já é algo natural para nós.

Carla Couto e Edite Fernandes, duas lendas do futebol feminino luso, jogaram juntas durante vários anos. Foto: Facebook Carla Couto.
Experiências internacionais: China, Itália e…o quase Arsenal
Jogaste também em Itália e até na China, numa altura em que muito poucas jogadoras portuguesas se aventuravam fora do país. Que sentimentos trazes contigo dessas experiências?
É verdade (risos). Bem, são sentimentos contraditórios. Eu fui para a China em 2001. Não é que agora tenha mudado muito, mas naquela altura era horrível. Eu não conseguia falar com ninguém e passei muito mal, porque sou uma pessoa comunicativa. Gosto de estar rodeada de pessoas, gosto de falar, gosto de conviver e ali apanhei-me num sítio onde não falava com ninguém, não conseguia comer e isso para mim era horrível.
Mas, quando consegui estabilizar emocionalmente, deu-me uma bagagem enorme. Fui eu, a Edite Fernandes e a Sónia Silva. Fiz três meses, aquilo era a Superliga, e digo-te que não percebi uma única coisa do que o treinador me pediu. Não consegui perceber. Eu fazia os exercícios por olhar para as outras e fazia igual, mas a verdade é que fui titular em todos os jogos e aquilo acabou até por ser divertido.
“Olho para trás e, talvez, se fosse hoje e com a realidade que conheço, então tinha aceite de certeza o convite”
Carla Couto
Agora, vou confessar-te algo. Depois disto tudo, fui fazer uma pré-época ao Arsenal, com a Edite. Estive duas semanas e o mister gostou muito de mim. Acho que é o momento em que eu olho na minha carreira e que me faz pensar que perdi uma oportunidade, talvez, de ter chegado a outros patamares. Ele fez-me uma proposta de contrato e eu tinha, se não estou a errar, 28 anos. Já tinha uma vida estabilizada e, aliás, ia fazer um contrato por objetivos.

Excerto de um jornal aquando da ida das três lusas para a China. Foto: Facebook Carla Couto.
Seis meses a jogar sem receber
Mas eu era uma “malandreca”. Aqui, se fizesse os mínimos, jogava, não é? Mas lá tinha que trabalhar bem e provavelmente tinha-me dado outras hipóteses. Não aceitei o convite e, hoje, olho para trás com alguma tristeza no sentido de que se tenho lá ficado poderia ter aberto outras portas e se calhar ter chegado a outros patamares. Mas colhi isto e vivo bem com isso. Olho para trás e, talvez, se fosse hoje e com a realidade que conheço, então tinha aceite de certeza o convite.
Em Itália, resumidamente, fui com 38 anos, mesmo “à maluca”. Apresentaram-me um contrato e eu nem quis saber de nada. Trabalhava como auxiliar de ação educativa na Câmara de Sintra. Na altura, podia-se pedir uma licença sem vencimento. Portanto, eu pedi por um ano e com a garantia de que quando voltasse tinha o meu trabalho. Assim foi. Mas, ao quarto mês, o clube deixou de me pagar e tive de estar a treinar e a jogar seis meses sem receber nada.
Portanto, por muito bom que aquilo fosse, eu tinha toda uma vida em Portugal e nada ali estava a correr bem. No entanto, na altura ainda era chamada à seleção e sempre que havia estágios era uma lufada de ar fresco, para mim. Quando acabou o contrato, o Dr. Joaquim Evangelista ligou-me para ser embaixadora do Sindicato e foi aí que também começou esta ligação que eu tenho ao Sindicato e estou muito agradecida por isso.
O papel de embaixadora e delegada…e o momento inesquecível com Éder
Precisamente, hoje em dia, és delegada do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF) e embaixadora da seleção feminina, representando a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) em eventos. Podes explicar melhor em que consistem esses cargos?
Efetivamente, o cargo de embaixadora e delegada é o meu trabalho. Como em qualquer Sindicato, estou diariamente ligada às jogadoras, tentar diariamente saber como é que elas estão e, na eventualidade de elas precisarem da nossa ajuda, estar sempre disponível para as ajudar. A nível da Federação, o cargo de embaixadora é o de estar sempre disponível para ajudar naquilo que eu puder e com a minha imagem, por exemplo.

Éder junto com a Carla a levantarem o troféu da Champions League feminina, na final deste ano, em Alvalade. Foto: Maja Hitij/Getty Images.
Foste embaixadora oficial da final da UEFA Women’s Champions League, no Estádio José Alvalade, a casa do Sporting, que até foi o teu ponto de partida para uma carreira que te consagrou, inclusive, como “jogadora do século” em Portugal. Como é que te sentiste ao levar o troféu, juntamente com o Éder, outro nome marcante para os portugueses?
Foi muito emotivo. O Éder e eu estávamos lá em cima, fomos chamados e eu disse-lhe: “Estou tão nervosa como na minha primeira internacionalização.” Tremia por tudo o que era lado. Era uma final de uma Champions, que eu acho que é, para qualquer atleta, seja masculino ou feminino, um marco único na vida e na carreira. Estar ali e a levar a taça foi incrível. Eu acho que o momento mais bonito que uma pessoa deve ter na sua carreira é ganhar um troféu e levantá-lo.

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Eu estava muito nervosa, ainda para mais quando estava com jogadoras que eu prezo e admiro. Depois estava ao lado do Éder, que é uma pessoa que toda a gente reconhece. Foi um herói em 2016 e é um ser humano espetacular que tive o prazer de conhecer e de partilhar com ele esse momento. Portanto, foi um dia muito emotivo e que me orgulhou imenso. Foi igualmente um dia que vivenciei com alguém que é muito importante para a história da nossa seleção masculina.